Em um apartamento na região central de Cuiabá mora a ex-primeira-dama da Capital e também de Mato Grosso, Maria Lygia Garcia, de 97 anos, viúva do ex-governador José Garcia Neto. Ainda esbanjando disposição e amor pela terra que a acolheu há décadas, ela recebeu o MidiaNews para uma conversa sobre política, família e o legado de seu marido.
Ao receber a reportagem, foi clara dizendo que a conversa seria “concisa e precisa, sem florear a verdade”.
Fui uma companheira, não governei com ele. Ele fazia a parte dele e me dava o apoio para eu fazer a minha
A língua afiada e o humor irreverente são características perceptíveis nos primeiros minutos de conversa com dona Maria Lygia. Contadora de histórias, ela esbanja uma memória invejável.
Nascida em Manaus (AM), veio para Cuiabá aos 16 anos. Aqui conheceu José Garcia Neto, com quem se casou e formou família. Criou na Cidade Verde seus cinco filhos, dos quais dois já partiram, e vê a prole crescer a cada ano, hoje tendo 13 netos, 22 bisnetos e uma tataraneta.
A mudança para Cuiabá não foi voluntária. Ocorreu após o pai perder o emprego durante a Segunda Guerra Mundial. Aqui, se apaixonou “aos olhares” com Garcia Neto, que trabalhava na mesma empresa que seu pai e ia até sua casa jogar xadrez. Entretanto, no início a história tinha um empecilho.
“Garcia veio pra Cuiabá ajudar o Cássio (Veiga de Sá, engenheiro) e o papai trabalhava nessa repartição, onde ficaram amigos. Ele ia jogar xadrez lá em casa e você sabe, olho vai, olho vem, nos apaixonamos”.
“Só que ele veio com a aliança dele. Ele era noivo. Aí eu disse para ele: ‘Olha, você é noivo, acabou’”, conta.
Após colocá-lo na parede, ele deixou a noiva e se casou com dona Maria Lygia, com quem dividiu a vida até sua morte, em novembro de 2009, aos 87 anos.
Em seu período com primeira-dama, dona Maria Lygia se destacou pelas ações sociais. Foi ela a responsável pela criação da Aprosol (Fundação da Promoção Social), que dava assistência à famílias mais carentes.
“Não fui funcionária do governo, fui uma voluntária e tive ajuda de muitos. Dirigi com uma amiga o Centro de Reabilitação Dom Aquino Corrêa, onde tinha a primeira oficina ortopédica do Estado. Fizemos a Casa do Artesão em 17 cidades, cuja a renda era toda do Artesão”.
“Criamos o Clube do Pequeno Trabalhador, que os adolescentes podiam trabalhar, tendo café da manhã, almoço, médico e dentista, mas tinham que ir para a escola, e o primeiro Centro de Leite de Soja do Brasil…”, enumerou.
“Contribui com o Garcia. Eu era realmente apaixonada por quem eu amei e tinha uma admiração pelo político que ele era, porque a palavra de Garcia era uma só. Então, eu era uma admiradora e fui uma companheira, não governei com ele. Ele fazia a parte dele e me dava o apoio para eu fazer a minha”, recorda.
Divisão do estado
Giordano Tomaselli/MidiaNews
A ex-primeira-dama Maria Lygia Garcia: recordações políticas e pessoais
Foi no governo de Garcia Neto (1975-1978) que aconteceu a divisão de Mato Grosso, originando o Mato Grosso do Sul (1977).
Garcia era contra a divisão, mas teve que comandar o processo por determinação do então presidente militar da época, general Ernesto Geisel. Dona Maria Lygia lamenta até hoje essa divisão.
“Ele me convenceu de que Mato Grosso ficaria sem a força de uma Minas Gerais no cenário nacional. E, realmente, a bancada de Mato Grosso do Sul não vota com a nossa bancada, Mato Grosso está fraco, não tem a força que podia ter se fosse integral”, diz.
Segundo ela, o governo alegava razão de segurança nacional para a divisão, já que Mato Grosso tinha tanta possibilidade de ser um estado grandioso e em algum momento buscar se separar do Brasil.
Segundo ela, Garcia organizou para que a divisão fosse a mais justa possível e nenhum dos dois estados fosse prejudicado.
“Se ele não distribuísse direito, alguém ia ficar prejudicado. No fim, ninguém ficou [mais] prejudicado, mas o prejuízo foi integral”, disse.
“Fiquei com pena dele…. e de mim”
Recentemente, uma expectativa tomou conta da família. Até meados de 2024, havia a possibilidade do neto, Fábio Garcia, secretário de estado da Casa Civil, ser candidato a prefeito de Cuiabá pelo União Brasil.
Não posso dizer o que aconteceu, porque não sei, mas fiquei com pena dele e, sinceramente, de mim
Entretanto, na disputa interna, o partido acabou decidindo pelo deputado estadual Eduardo Botelho, que acabou ficando em 3º lugar, de fora do segundo turno. Dona Maria Lygia lamenta não ver seu sonho realizado.
“Senti porque eu sei que ele também sonhava com isso, tinha planos. Um sonho que foi acalentado. Não posso dizer o que aconteceu, porque não sei, mas fiquei com pena dele e, sinceramente, de mim”.
Questionada se conversa sobre política com o neto, ela diz que o tema nunca vira assunto e que há tempos não o vê. Além disso, não costuma aconselhá-lo em nada, mas que certamente o avô faria isso caso ainda fosse vivo.
Em sua opinião sobre o cenário político geral, ela diz sentir falta de duas coisas hoje em dia, em comparação com a época de vida política de Garcia. “Ética e respeito. Quando eu vejo os deputados federais na Câmara se agredirem eu fico triste. Quando eu vejo os poderes não se respeitarem também”, afirmou.
Após compartilhar um pouco de sua história, sua visão sobre diversos assuntos e refletir sobre seu legado para o Estado em sua passagem como primeira-dama, ela foi questionada se quando mais jovem pensava em chegar nessa idade.
Além disso, impressiona como, aos 97 anos, ela tem tanta energia, lucidez e vitalidade. Escrevendo mais um livro, já pintou telas e ainda costura e cozinha. O segredo para toda essa disposição seria planejar suas atividades para o dia no momento em que acorda, além de nunca ficar sem fazer nada.
“É engraçado, eu nunca pensei em tempo. Eu deixo a vida me enrolar, mas eu enrolo a vida também. Porque ela não me faz ficar triste, eu não cultivo tristeza”.
